segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Palavra a Luís Costa


A Palavra a Luís Costa

Quem diz verdades perde amizades

Quando era criança, contou-me
a minha mãe a parábola de um pobre e triste camponês que, divisando o horizonte, lá longe, onde as ingremidades da serra pareciam erguer-se para beijarem o céu, acreditou que, alcançando aquele ponto situado no vértice da linha de fuga do seu olhar, tangeria, com o seu cajado, a deslumbrante pele do azul. Deixou tudo para trás e fez-se àquela fé. Foi, de montanha em montanha, acreditando sempre que, na planura seguinte, seria um elo entre a Terra e o Céu.
São múltiplas as interpretações desta estória, e vestem igualmente bem em diferentes cinturas: nas mais anafadas, que logo se apressam a dizer que mais valia o palerma do campónio ter ficado, bem acomodado no seu canto, certo e seguro, a comer e a beber do que tinha; nas mais escanzeladas, que exacerbam a óbvia cegueira do montanhês; nas mais elegantes, que preferem imaginar as boas linhas resultantes da prática de uma atividade física tão continuada; nas mais musculadas, que ressaltam o desapego, quiçá a ingratidão do aldeão, que deixou tudo para ir atrás de uma ilusão… Eu prefiro acreditar que a minha mãe pretendeu apenas ensinar-me o inconformismo e a determinação, dizer-me que a vida só vale a pena, se formos capazes de conceber e perseguir os nossos sonhos, mostrar-me que o que realmente conta é o caminho, não a chegada. Prefiro pensar em tudo o que o camponês viu e experienciou na sua incessante caminhada. Prefiro pensar na nobreza do seu despojo, no conhecimento bebido, na força inquebrantável que o seu “sonho impossível” lhe conferiu, no esteio vertical sobre o qual moldou o sentido da sua própria vida.
A última década ficará gravada, em baixo-relevo, na História da Educação em Portugal. Serão páginas pálidas e doentias aquelas que se darão a ler à posteridade. Vivi-as todas na primeira pessoa ― de Sol Maior a Dó Maior ― no pequeno palco por onde ainda, penosamente, me arrasto. Vi o Sol erguer-se e trazer com ele a madrugada, assim como uma criança que arredonda uma colina com um papagaio a dançar de contente na extremidade de um fio. Vi como os atores se acenderam para cantarem odes em uníssono; vi as palavras serem pétalas, os abraços serem laços, as mãos serem lábios do coração; vi o céu clarear, as personagens “luminescerem”, e acreditei que estavam nuas e transparentes e que eram genuinamente assim. Pensei então que seria dali que todos, erguendo cajados de giz, escreveríamos brancuras no azul. Depois… Os depois fizeram-se nuvens carregadas que traziam Éolos ariscos no ventre. Um a um, os Prometeus foram despindo a luz e trajando pesados capotes, vergando até arrostar o solo escuro e lamacento que as sucessivas bátegas frias foram gerando. Paulatinamente, vi-os desenverdecer, enrugar, encolher, sumir na sua croça, converterem-se em submissa solidão; vi-os regurgitar os sonhos, esmoer recalcamentos, bolear dores, fazer profissão de fé diante de novas palavras, novos títulos, novas luminárias, novos ícones; vi-os ganhar soslaio permanente, vi-os desdizer, vi-os tornarem-se apóstolos de palavras pútridas, moldadas nas catacumbas da Noite, com saliva e solo lunar. Depois… paulatinamente, vi-os irromper do chão, em carreiro obediente. São repetidamente trepados, acalcanhados, mas prosseguem o seu interminável vaivém, trajando sorrisos, sublinhando com sins todos os seus passos monotonamente compassados. Já não ousam transpor as fronteiras do sonho, já só permitem que lhes derrubem as barreiras do respeito. No outeiro abandonado, anda perdido um judeu errante ― sobre o qual a Noite vai parindo cantigas de falso maldizer que o vento bafiento dissemina ― um eremita caminhante, brandindo o seu cajado na escuridão e dando asas às suas velhas “verdasfémias” . É o mesmo montanhês de sempre, o que aurorava os amanhãs, mas dizem agora que ensandeceu, que ficou refém dos outroras desvalidos. Nada do que diz, nada do que faz tem serventia naquele dito mundo real. São palavras vãs de um ente aluado e anormal.
Estão a sufocar-me a poesia, a querer agrilhoar-me os sonhos! Não, não posso ficar onde me definha o coração, onde os olhares rescendem a crepúsculo, onde as asas foram arrancadas para atapetarem o chão, onde os hinos e as epopeias se foram reduzindo à insignificante ressonância de um pequeno refrão maquinal. Não, não posso ficar apenas para ser uma nota dissonante! Trago ainda o universo todo, em expansão, alojado no peito. Enquanto o tiver aqui, serei do seu tamanho e sonharei a sua amplidão. Terá razão quem fica (mesmo quem fica encerrado em si mesmo), porque sabe ―quer saber ―que é assim em todo o lado, que em toda a parte há formigas e carreiros e calcanhares assassinos, noites que parem noites; terá razão quem pensa que as montanhas foram todas engolidas pela negridão, quem encontrou razões de sobra para não voltar a dizer “NÃO!”. Mas eu não posso nem quero. Antes a fome, antes a solidão! Nem mesmo em mim, quando os estios se demoram, gosto de ficar muito tempo. Por vezes, quando a estufa me constrange em demasia, saio da minha carapaça para me outrar e descansar de mim.
Nem as plantas se conformam com a fatalidade de serem alimento: desembainham espinhos, geram venenos. Nem as plantas se conformam com o parco pedaço de terra que o acaso lhes concedeu: os caules, as raízes e as sementes voadoras avançam, dobram lonjuras, atravessam continentes e oceanos. Só os seres inanimados e as pedras sedimentam onde estão. Aqueles putrefazem ou petrificam, estas já são.
Não posso despedir-me desta Escola, despeço-me apenas, por agora, da minha escola. Serei sâmara vertiginosa, volitarei, de azul em azul, até cair. Só então serei chão.

Luís Costa, 07 /06/2015

Nota - Partilho, com emoção, este último emotivo texto do Luís Costa. E subscrevo por inteiro as suas palavras. Infelizmente. Para mim, para nós.

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