domingo, 21 de junho de 2015

Golpe - Da Alegria e da Dor


Golpe - Da Alegria e da Dor

Ser professora em Portugal é comprar, ano após ano, um bilhete de sorte madrasta. Mas a gente insiste, insiste, insiste...
"Quando recebi a informação, ia já a caminho do cinema. Tinha decidido tirar a tarde. Estava cansada dos papéis, das conversas, da espera. Queria ter apenas um pedacinho de sanidade, de esquecimento.
Decidi deixar o telemóvel no carro, porque sabia que a hora ia chegar e, simplesmente, não me apetecia estragar o momento. Porém, quando a sessão acabou e as luzes iluminaram a sala, percebi que não podia continuar a protelar. E, a cada passo mais perto do carro, senti algo incompreensível. O meu coração ia acelerando, mas os pés colavam-se ao chão. Os sons titubeavam na lonjura, como se eu estivesse quase fechada numa caixa, e cada gesto meu fosse projetado muito lentamente no espaço. Ao olhar em redor, só me ocorria que, dentro de minutos, aquele tempo já não iria existir. Que aquele momento, um segundo prolongado, se desvaneceria para sempre. Tinha a garganta seca, os olhos vidrados e foi com desânimo e esforço que coloquei a chave no carro.
Sentei-me, respirei fundo e agarrei no telefone. 8 mensagens, 15 chamadas. Por breves instantes supus que a alegria fosse alheia e a má notícia costumeira vinha a caminho. Então, abri a primeira mensagem, do meu eterno namorado. E, a custo, li: QZP 7.
Assim. QZP 7. Apenas isto.
Reli, abri outra mensagem e outra, todas com parabéns que começaram, devagarinho, a abrir uma brecha no meu corpo, até ribombarem com uma euforia tal, que um trovão de luz e choro compulsivo me desfizeram em água.
Ali estou eu. Ali estou eu ainda agora. Sentada no carro, um calor demoníaco que sufoca corpos e eu não sinto nada, só um rasgo imparável de lágrimas e soluços descontrolados.
18 anos depois, estou efetiva.
As mãos tremem tanto que nem consigo carregar nas teclas. E, quando tento falar, a voz esganiça-se, esfuma-se e esbate-se num choro sem tino.
Do outro lado, o meu amado ri do meu silêncio entrecortado por soluços e, à distância, dá-me um abraço feito de flores e frutos, tão doce, tão perfumado, que eu inspiro fundo e tenho-o logo ali, respirando-me ao ouvido.
A seguir falo com a minha mãe. Depois, a minha irmã gémea, mais alguns amigos que viveram a minha vida de angústia quando, nos últimos 18 anos, o coração e o medo me emparedavam num sofrimento atroz (e a todos vós desejo que este momento inigualável de felicidade vos seja extensível). Como pode caber tanto carinho num telefone tão minúsculo?
A seguir, um colega, que partilha a minha alegria, “e o que fazemos a seguir?”. Na minha voz entrecortada pela emoção e pela baba de cuspo e suor que me escorre, suspiro: “eu nem sei, nunca li a legislação desse ponto de vista…”
E, depois, finalmente, a primeira chamada de desalento, de dor profunda. A Xaninha, com vinte anos de serviço, que continua, simplesmente, candidata a professora.
E as minhas lágrimas duplicam, porque o meu coração tão feroz, tão destemido, não aguenta mais golpes hoje. Ainda estou no carro parada, as mãos tremendo, um bafo endemoniado à volta, eu e a Xaninha a chorar juntas no vazio que nos rodeia a ambas.
Não, já não choro compulsivamente de felicidade. Choro de raiva, de tristeza, de vergonha pela humilhação a que nos sujeitaram e sujeitam tantos anos.
Este golpe político tão elaborado e genial (parabéns a si, senhor Crato, quase lhe beijava a boca em vez de desejar que lhe trucidassem esses minúsculos órgãos genitais), porém, não me fará esquecer que existe um futuro à minha frente. Sim, estou feliz com uma imensidão que só quem passou por tudo isto pode perceber. E sim, também estou furiosa pela injustiça que este concurso representa.
Sentada no silêncio do meu carro, sorrio.
Posso estar embriagada de felicidade, mas, quando votar, não farão de mim parva.
Ligo, finalmente, o motor e sigo caminho.
Parece que o futuro está à minha espera…"

Diana Souza

Nota - Post integralmente surripiado aqui.

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