terça-feira, 18 de março de 2008


Com(n)tradição - Dackla - Sahara Ocidental
Fotografia de Artur Matias de Magalhães

José Régio - Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

2 comentários:

Helder Barros disse...

Não podia deixar de comentar esse Poema de José Régio, que me diz muito! E não é pelo facto do Snr. Pinto da Costa o gostar o de recitar de cor em programas de TV e noutras cerimónias! É porque é uma lição de vida que, por exemplo, nesta altura conturbada da Educação Portuguesa, nos poderá inspirar muito. Para veres a importância que dou a esse Poema, podes perguntar à minha Professora Maria José Gonçalves, se foi verdade ou não, que um dia lho dediquei. Ela, para mim, é a personificação desse Poema, porque bem a tentaram levar por caminhos mais fáceis e apetecíveis; mas ela escolheu sempre o caminho da sua autenticidade! Obrigado Anabela, por nos dares ânimo em forma de Poesia de qualidade e Portuguesa!

Anabela Magalhães disse...

Ora seja bem aparecido por aqui...com que então andou a baldar-se para os comentários!!!!
Deixe-me a divinhar... muito trabalho na ESA! lol
Agora a sério. Esta poesia, adoro-a, porque reflecte um espírito de rebeldia que eu muito aprecio, porque reflecte um gosto pelas coisas excessivas com que eu também me identifico, porque reflecte, enfim, a vida, assumida em toda a sua plenitude.
Não me identifico com vidas mornas que passam meramente passando.

 
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