terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Crónica - Objectivos individuais

por Teresa Martinho Marques

"Agora que o ano começa, e para que comece bem, vou fazer uma promessa ao meu pai e à minha mãe: Cumprirei os cem por cento do meu serviço lectivo, os mui nobres objectivos do apoio educativo, o serviço não lectivo, sempre de olho bem vivo, para ter pontuação máxima do conselho executivo. Serei a melhor a melhorar, os resultados de alunos, e nunca mais dormirei, se isso significar, provar por A+B que sou eu quem mais consegue abandonos evitar. E ainda, coisa pouca, vou participar que nem louca, na vida do agrupamento, actividades e festas, projectos curriculares, extracurriculares, tudo o que me ordenem chefes e titulares, andarei em roda-viva, somando pontos à toa, não quero que nada me escape, que eu cá sou muito boa e bem pouco dada a ais, quando defino e cumpro objectivos pessoais. Serei moça empenhada, cheia de qualidade na minha participação, e não haverá nenhum chefe que não repare em mim e em tod’esta dedicação. Já nos órgãos de gestão, estruturas de orientação, função de avaliador, de mestre coordenador, pontitos não posso ter... não quis ser titular e portanto por aí, não há nada a fazer (mas livro-me, sim senhor, de ser bem investigada, com pormenor e rigor, pelo senhor inspector). Promessas p’rá formação, não sei se as posso fazer, com o trabalho do mestrado não me sobra qualquer tempo, mesmo que durma pouco e ande sempre a correr... Mas tentarei, ind’assim, ter máxima pontuação, na avaliação de projectos, dos de investigação, cheios de inovação da coisa educativa, que eu por mais que me sufoquem, esbracejo e venho à tona, tentando ser criativa. Prometo relacionar-me, com toda a cordialidade, com todos e mais alguns, escola e comunidade, ter sempre o máximo dos pontos, sorrir a sérios e tontos, desenvolver contra a náusea, tod’a minha imunidade. E preparar, organizar, realizar as actividades lectivas, para que o chefe me dê, sempre sem hesitar, os quatro máximos pontos, seja qual for o parâmetro que esteja a considerar, cumprir objectivos, programas, tudo correcto sem falhas, disfarçando bem as gralhas, usar muitos materiais, ter em ordem dossiers e estimular tudo mais, mesmo agora sem ter tempo para as aulas preparar. E para ele me pontuar, maximizando o número, a relação pedagógica, nas aulas que for visitar, e se convencer também que sou boa a avaliar, recorrerei ao açúcar, chocolates, rebuçados, gelados e mais recompensas, promessas e ameaças, feitiços e outras graças que eu não sou de brincadeiras, ou bem que os miúdos ajudam, p’ra ninguém me mal grelhar, ou bem que se fritam eles se não querem ajudar.E na auto-avaliação direi o melhor de mim (que se a gente não se amar, quem de nós irá gostar tanto tanto tanto assim?). No fim de tudo isto, se não garantir um excelente, porque não há lugar na cota e é inconveniente, morderei de novo a raiva, farei um sorriso contente (será melhor prevenir), despeço-me por mais dois anos, na esperança do que há-de vir, que a coisa definhe e morra de enfarte e estupidez e que eu sobreviva à dita, sem ter ferido o amor que aqui me trouxe e me fez (de alma e coração, acordada e alerta, contra todos os absurdos, sem me vergar com a dor) defender com toda a força, a coisa séria que é isto de ser professor. Agora que o ano começa, e para que comece bem, vou fazer uma promessa ao meu pai e à minha mãe: Prometo ser forte e lutar para que o pesadelo descrito não me afogue a inteligência, não me contamine o corpo, não me deforme o sorriso, nem me impeça de sonhar..."

Gostei muito deste texto de Teresa Martinho Marques que nos alerta a todos nós, professores, para a possibilidade de nos prendermos e enredarmos em tralha e mais tralha, burocracia e mais burocracia.
Atenção redobrada é preciso. É que corremos o risco de perdermos o pé. Ou o Norte.
A ver vamos.

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