sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Abdol


Abdol Verde - Sahara - Líbia
Fotografia de Artur Matias de Magalhães

Abdol

Hoje volto a 2004, à minha viagem à Líbia, desta vez para falar de um personagem chamado Abdol.
Esclarecimentos prévios para quem desejar seguir o exemplo. A saber. Não se entra na Líbia como se entra em qualquer outro país. Não se viaja na Líbia como se viaja em qualquer outro país. Para além de não se entrar na Líbia sem o convite escrito de um líbio, também não se passeia na Líbia sem aquilo a que os líbios chamam de polícia turística, polícia esta dependente do estado, e que tem como nobre missão proteger a turistada, que por estas areias se aventura, de possíveis ataques terroristas, em paragens tão inóspitas e desprotegidas como o deserto do Sahara.
E depois de feitos estes prévios esclarecimentos passo ao Abdol propriamente dito e à sua nobre missão de vigilância de dezanove portugueses difíceis.
Vindos da Tunísia, e passado o primeiro controlo fronteiriço tunisino, eis-nos parados do lado líbio. Documentos para cá e para lá, toda a gente a testar os seus telemóveis que imediatamente ficaram sem pio, estamos nestes preparos e eis que nos entra, mini-bus adentro, um indivíduo desconhecido, pestilentemente perfumado a suor. Era o nosso polícia turístico, que bem se esforçaria por nos acompanhar em todos os passos por terras da república de Kadafi, tarefa para o qual foi previamente mandatado, mas que se revelaria assaz complicada com um grupo tão indisciplinado como o nosso que por vezes, nas localidades, se subdividia em grupos mais pequenos andando ao deus dará, dificultando-lhe a tarefa de nos vigiar e controlar, deixando-o tipo uma barata tonta sem saber a quem proteger.
Pois este pide-guide, Abdol de seu nome, prontamente rebaptizado por mim de pide-guide em "homenagem" à nossa polícia política do Estado Novo, revelar-se-ia uma mais-valia imprescindível durante os nossos dias e noites no Sahara. Solteiro, trinta e muitos anos, ex-professor, irmão de três professoras, abandonou a sua profissão por não aguentar as saudades da vida errante e livre no deserto e acabou por abraçar uma profissão que lhe permitia contactar quase diariamente com o que ele mais amava e que eram as dunas de areias multicolores e de formas curvilíneas e sensuais, o vento quente do deserto, as formas improváveis das rochas emergindo das areias, formando arcos, catedrais ou, como eles diziam, formando mesquitas.
A surpresa veio pouco tempo depois do Abdol se ter imiscuído no nosso grupo. O nosso pide-guide era um pide-guide musical que de todas as superfícies extraía música ao som das batucadas que fazia nas superfícies lisas dos jipes, nas superfícies lisas dos jericans de água e de gasóleo, nos tachos e panelas da nossa cozinha tuaregue ambulante.
Cantorias boas que nos acompanharam em todos aqueles dias, e principalmente em todas aquelas noites, passadas à volta duma fogueira, no silêncio rompido daquele deserto. E era um artista completo, o tipo, porque para além de nos dar música, cantava e dançava com um entusiasmo e vontade, entregando-se e perdendo-se completamente naquela alegria irracional de quem comunga inteiramente com o Sahara.

Saudades. Muitas saudades daquele silêncio espampanante do deserto cortado pela música simples, ritmada e enérgica do Abdol. Saudades de sentir a areia quente nos pés. Saudades de me deitar ao comprido sobre a areia comungando completamente com ela, absorvendo a sua energia, o seu calor. Saudades de ouvir as dunas da Líbia a cantar por baixo dos meus pés descalços. Saudades de sentir o vento quente na cara. Saudades da paz e da calmaria interior. Saudades do Mar da Tranquilidade, do Sahara. Saudades.

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