terça-feira, 20 de março de 2007

Eu e a Rapaziada


Nouâdhibou - Mauritânia
Fotografia de Artur Matias de Magalhães

Eu e a Rapaziada

Sempre fui uma maria rapaz desde miúda. Cresci a ouvir a minha mãe dizer que eu e o meu irmão nascemos com o sexo trocado. Eu deveria ser o rapaz lá de casa.
Sempre fui, por temperamento, destemida, corajosa, inventiva, lutadora, irrequieta, aventureira. Deveria ser um rapaz!
Cresci entre correrias, brincadeiras de índios e cowboys, cavalgadas nas videiras do meu avô Rodrigo, corridas sobre os cedros da florestal, corridas de sameiras, corridas sobre carros de guias pela rua da Cadeia abaixo num tempo em que passava um carro quando o rei fazia anos. Cresci entre cabeças rachadas e braços estalados e idas ao hospital. Cresci nadando entre os peixes, o lodo e as cobras do rio. Cresci a apanhar rãs e girinos nos charcos, a incendiar ninhos de vespas e a fugir a sete pés... às vezes sem êxito! Cresci entre as matanças do matadouro, a ver matar carneiros e porcos, a ver matar bois, os meus preferidos. O sangue jorrava qual nascente, quente e vermelho, a vida do animal, pendurado de cabeça para baixo, a esvair-se, por acção do facalhão do matador gordo e disforme. Era uma visão imponente. A minha mãe não gostava que eu fosse para lá e dizia-me que não era lugar para uma menina. A verdade é que eu, sempre que podia, escapulia-me para lá e ia buscar morcões para o meu pai ir à pesca. Fui crescendo a odiar as prendas que me davam. Bonecas, roupas, tachos e panelas! Eu queria as prendas do meu irmão. Naves espaciais, carrinhos telecomandados, bolas, ferramentas.
Cresci. Continuei uma rapariga entre rapazes. Os meus melhores amigos sempre foram rapazes. As minhas companhias sempre foram rapazes. Naqueles tempos só eles saíam até tarde. Eles e eu. Nas férias as raparigas recolhiam pelas onze horas. Depois ficavam eles e eu. Dançávamos até de madrugada. Comprávamos pão quente na padaria do Arquinho. Sentávamo-nos na meia laranja da Ponte Velha, barrávamos o pão com manteiga e comíamos sofregamente. E conversávamos. Conversávamos sem horários e sem grandes preocupações. Dos nossos projectos, dos nossos amores e até dos nossos desamores. A vida era bela e nós tínhamos dezasseis, dezassete, dezoito anos.
Cresci ainda mais. E cortei o cabelo com pente dois. Lá se foram os meus longos cabelos num abrir e fechar de olhos. Senti-me aliviada. Passei as minhas mãos sobre a minha cabeça. Os cabelos pequenos souberam-me bem entre os dedos. Tinha trinta anos e invejava o corte de cabelo dos rapazes desde miúda. Agora podia furar as ondas do mar e sair da água penteada sem os cabelos colados pelo rosto a incomodarem-me.
Hoje continuo a sentir-me particularmente bem entre rapazes. Continuamos a ter conversas pela madrugada dentro sobre os nossos projectos, sobre viagens que ainda não fizemos mas vamos fazer, sobre a arquitectura de que gostamos, sobre os museus que visitámos e as exposições que vimos e o que nos falta ver. Continuo sem paciência para conversas de cabeleireiras, de manicuras, de cortinados, de bordados, de croché, de limpezas de Páscoa, de limpezas de pele, de telenovelas.
A fotografia que ilustra este post sou eu, em Nouâdhibou, entre a rapaziada da expedição Braga-Luanda, realizada no Verão de 2006.
Sou um peixinho dentro de água. Sou uma entre iguais.

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